Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

APROXIMAÇÃO AO LEGÍTIMO

Na evolução do projeto há um momento em que, desprendidos do comprometimento de produzirem "coisas certas", "desenhos bonitos" e outros estereótipos, as crianças e jovens participantes entram efetivamente em contato com a arte e com o que na verdade mais interessa a todos nós orientadores: a aproximação delas à elas próprias.

Acreditamos que só mesmo a partir do autoconhecimento, é possivel serem feitas escolhas realmente legítimas. E são justamente essas escolhas legítimas,que podem ser fundamentais, para que se promova importantes mudanças de direção na vida de muitas crianças.

Certa vez, nas primeiras aulas de um dos grupos do projeto, um menino de 9 anos falou com orgulho a um dos orientadores que assim que crescesse um pouco mais queria ser bandido. Como nós da equipe, não acreditamos em lições de moral e discursos de boa conduta, o orientador escutou com atenção, fazendo apenas uma pequena ressalva, lembrando ao menino, que ele ainda era muito jovem para fazer uma escolha. Fosse essa escolha tornar-se bandido, enfermeiro, advogado, carpinteiro, médico, soldado, professor ou mecânico, por exemplo.

- Espera um pouco! disse o professor. Acho que o projeto ainda vai te ajudar a escolher.

Dois meses depois, esse mesmo menino disse baixinho ao professor num canto reservado da sala:

- Mudei de idéia... acho que eu quero mesmo é ser professor de artes.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

IMAGINAÇÃO e VULNERABILIDADE

Observa-se especialmente em crianças de 2 a 6 anos, que elas realizam constantes exercícios de adequação entre as características essencialmente livres com as quais elas vêm ao mundo e as limitações impostas por esse mesmo mundo ao qual ele tenta fazer parte. Para facilitar essa adequação, a imaginação promove a fantasia que por sua vez se desenvolve como uma fonte de fortalecimento e apoio, para que possa ocorrer a acomodação desses opostos.
As crianças e jovens que atendemos no projeto, demonstram em sua grande maioria um notável comprometimento com esse período. Consequentemente também, apresentam sérias dificuldades com limites. Em geral, essas crianças são extremamente reduzidas dentro dos espaços possíveis de atuação, a ponto de não se reconhecerem competentes, ou vivem tão sem medida a ponto de não considerarem as fronteiras do respeito por sigo mesmas e pelo outro.
A violência e o desrespeito a que são submetidas desde bem pequenas, fazem com que elas priorizem atitudes de defesa contra o mesmo meio que as violenta e desrespeita. Experiências com o criativo, como: fantasiar, criar personagens, escutar estórias, são fundamentais para o desenvolvimento saudável de indivíduos em formação, no entanto, para essas crianças, essas experiências deixam de ser recursos de apoio para se transformarem em ações autofragilizadoras.
Ao se sentirem vulneráveis dentro deste universo permeado pela violência, elas se escudam com os mesmos mecanismos que as violentam constantemente.
O que pensar?
Talvez haja respostas ou ao menos material para se refletir sobre isso num outro universo: o universo daqueles que têm oportunidade de criar e viver fantasias que lhes permitam criar por exemplo, um amigo imaginário, uma "conversa" com bonecos, um rabisco na terra, ou um “mergulho” nos contos de fadas. Afinal, quantas fadas, quantas bruxas, quantas princesas e príncipes alguns têm a oportunidade de ser?
Praticar a imaginação é acessar o simbólico e dele fazer uso, para que, muitas vezes, as crianças possam dar conta de certas experiências vividas num mundo, nem sempre divertido ou fácil de aceitar.
Vamos agora imaginar a vida e o desenvolvimento de crianças que não podem exercer esse "transbordamento" de sentimentos e sensações que a imaginação oferece. Quantas questões, por vezes adversas, se somam e por isso se avolumam ao que essas crianças já têm que dar conta, simplesmente por estarem vivendo em condições tão difíceis e com limites tão indefinidos?
A maioria dessas crianças que atendemos no projeto,“pulou” essa fase em que a realidade deveria estar sendo saudavelmente tratada pela fantasia. Significa dizer que, dificuldades para lidarem com certas realidades ou até para poderem “falar” delas, poderiam "transbordar" através de ações criativas, caso tivessem acesso durante seu processo de desenvolvimento.
Resgatar essa fase e com ela apresentar recursos de expressão, parece ser nossa principal ação sócio-educacional. Mas na verdade, não é tão simples assim. É preciso pensar seriamente: Para qual realidade trazemos nossas crianças após o resgate?
Lidamos com esse paradoxo. Se por um lado a arte promove o encontro do indivíduo com aspectos essenciais que auxiliam na sua formação como pessoa, por outro, essa mesma aproximação, parece distanciá-lo da realidade de sua vida. Uma vida que se mantém instalada dentro de comunidades promotoras do embrutecimento.
Nas difíceis passagens do conhecido (no caso de nossas crianças, o meio embrutecido e subumano das favelas) para o desconhecido (a proposta de experimentar o autoconhecimento através da arte), carregam-se “amuletos” (recursos de apoio). Alguns se apegam no silêncio, outros na arrogância. Alguns discursam e se agarram em valores marginais, como se fossem náufragos. A verdade é que, qualquer indivíduo, quando se sente inseguro, dificilmente chega sozinho em áreas fora do próprio domínio. Há sempre um “amigo” ou um personagem para se apegar, mesmo que seja um bandido.
A cultura das comunidades que foram colocadas à margem da sociedade reconhecida, para não perderem sua identidade se fazem representar por seus “símbolos”; expressões, músicas, vestimentas, condutas, quase sempre conflitantes, quando estão presentes em outro meio social.

O que fazer?
Mais paradoxais se tornariam as ações dos orientadores atuantes no projeto, caso não fossem consideradas as possibilidades de colaboração dos próprios alunos através da cultura, da estética e conhecimento que lhes é próprio, mesmo que essa cultura pareça estar tão distante da cultura, estética ou conhecimento dos orientadores.
É preciso acolher a cultura que é trazida por essas crianças e jovens do projeto, afinal eles são parte dela e a ela se fundem para se identificarem como pessoas e poderem sobreviver. Sua não aceitação é o mesmo que negar a existência dessas crianças e jovens que atendemos. A não aceitação tenta eliminar as referências construídas por essas crianças e provoca a ruptura ou a não realização dos vínculos tão necessários entre orientador e aluno.
É preciso criar pontos de encontro entre essas duas culturas separadas por esse infeliz “apartheid” que foi criado ao longo de tantos anos e que produziu culturas conflitantes, assim como qualidades educacionais e oportunidades sociais sempre diferenciadas.
Mesmo sendo difícil para alguns orientadores, é fundamental compreender e aceitar os “símbolos” tantas vezes desagradáveis, trazidos por alguns alunos. Só assim é possível ajudá-los, na árdua missão que eles enfrentam quando ultrapassam a fronteira de suas comunidades em direção a valores tão contrários aos que os constituem.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

“A TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS” (na comunidade do Jacarezinho)

Pensando nas propriedades transformadoras da arte, acho importante comentar uma experiência vivida em 2007, durante o processo de evolução do projeto social “Eu sou”, quando foi se tornando inviável a continuidade do programa que havíamos criado, em função de um interesse quase unânime pelas armas, nos grupos que atendemos naquele ano.
Ao notarmos que as crianças e jovens vinham produzindo escondido, “armas”de argila , esclarecemos a todos que em se tratando de arte nada era proibido num espaço de criação como o nosso e por isso eles não precisavam esconder esse interesse. No entanto, era importante lembrar, que o que eles vinham fazendo não era exatamente arte, mas tentativas de cópias de armas originais. Não havia na atitude deles, a transformação que caracteriza a arte, assim sendo, preferíamos que eles utilizassem, ou ao menos tentassem, dirigir esse interesse para ações verdadeiramente artísticas.
Em meio ao caos formado de muitas falas emboladas, risos e “denúncias”, nós trouxemos alguns exemplos de quando se faz cópia e quando se faz arte. Em vão; ao contrário do que se esperava, com a liberação estabelecida, o projeto acabou se transformando numa verdadeira “fábrica de armas” de argila.
Confesso que não sei se naturalmente, essa necessidade, essa quase pulsão, cederia com o tempo. Por várias razões, não podíamos “pagar para ver”.
Durante algumas supervisões então, discutimos exaustivamente essa questão, até optarmos pela criação de uma espécie de projeto dentro do projeto, no qual, nosso principal objetivo seria a transformação desse cotidiano de violências, dentro do qual essas crianças estavam inseridas, em ações e produtos que além expressarem esse triste cotidiano, fosse também capaz de indicar possibilidade de mudanças em seus olhares e consequentemente em suas perspectivas de futuro. Criamos então um projeto de dois dias, ao qual demos o nome de “Transformação das armas”. Resumidamente, o programa promove a transformação do que é real em expressão e arte.

“Transformação das armas”.
Exercícios

Objetivos:
Concretizar e desconstruir o objeto e a palavra: ARMA. (objetivo)
Transformar: NUM LIVRE DESEJO. (subjetivo)

Resumo do processo:
Desconstruir e transformar:
Palavra, forma e função.

Sensibilização: Estória contada – “Os três lobinhos e o porco mau”
Esta estória foi escolhida devido a inversão, que faz dos lobos as vítimas e o porquinho o algoz. Induzindo assim os participantes a repensar os valores constituídos.

Exercícios preparados:
Para transformação da palavra.
• “Desconstrução da palavra”
Desconstrução das letras que compõem a palavra A R M A, para estudo de novas construções.
Promoção de experiências de inversão que simbolicamente podem promover inversão de pensamentos.
Além da simples desordem para nova ordem, oferecemos possibilidades de criar formas variadas para as quatro letras que poderão ser produzidas pelo processo de:
a- “Letras em argila” . A proposta promove a transferência das letras (A, R M, A) em argila para o gesso, obtendo-se um resultado rebatido e de alto para baixo relevo.
b- “Impressão de texturas” . Técnica simples em que se coloca um papel sobre um elemento texturado qualquer ou com pequeno volume (como recortes de cartolina ou barbante) e com a ajuda de um lápis cera deitado e friccionado sobre o papel, registra-se nele a textura do elemento escolhido. Para isso, pode-se rasgar, recortar cartolinas finas com tesouras ou mesmo com auxilio de estiletes (esses, usados somente pelos orientadores).

• “Construção poética”
A partir da livre associação, produzir uma seqüência de palavras que são anotadas pelo orientador.
Exemplo: (essa associação é apenas um exemplo).
Arma me lembra tiro.
Tiro me lembra dor.
Dor me lembra barriga.
Barriga me lembra neném.
Neném me lembra começo.
Começo me lembra vida.
E assim por diante...
As palavras em negrito são a “construção poética”.

• “O buraco do tiro”
Cada aluno recebe a palavra ARMA impressa com grandes letras que ocupam o maior tamanho de uma folha de papel ofício. Com o uso de uma cartolina preta previamente preparada (furada no centro com um círculo de aproximadamente 6 cm de diâmetro), cada criança desliza o orifício da cartolina recebida, sobre a palavra ARMA, até escolher um conjunto de linhas ou formas (que por não estarem completas, se tornarão abstratas) para a realização de um novo trabalho (pintura ou desenho) que tenha estas linhas como referência.



Para transformação da forma e da função.
Proposta 1:
• “A transformação de um objeto”.
1- Construção realista. “A arma como me lembro que é”. (forma representada)
Os alunos são incentivados a produzir em argila “armas” como eles lembram que elas são.
2- Construção imaginária. “A arma que produz o que eu gosto”. (forma e função transformada).
Nesse caso, criar em argila uma nova forma com uma nova função para a arma.
Apresentar o trabalho falando sobre a função criada para ele. Registros filmados e fotografados pelos orientadores

• “Transformação mímica de um objeto” (neste caso, foi escolhido um objeto semelhante à uma arma) (função).
No meio de um circulo formado pelos alunos, é colocado um objeto que poderá ser usado numa pequena cena individual improvisada, na qual o objeto obrigatoriamente perde sua função inicial, para pantomimicamente ganhar outro significado.


Programa, resultados e avaliações:


Aula 1/ Programa e resultados:
Na primeira aula as propostas foram apresentadas da seguinte maneira:

1- Estória contada – “Os três lobinhos e o porco mau”
2- “A transformação de um objeto” Construção realista. A arma como me lembro que é.
3- Livre associação de sentimentos a partir de uma arma.
4- Transformação mímica de um objeto.
5- Construção imaginária. “A arma que produz o que eu gosto”.
6- Apresentação individual para o grupo sobre as soluções desenvolvidas

Avaliação:
1- Boa relação com a estória.
2- Participação da maioria, com visível demonstração de surpresa de muitos frente à proposta pouco convencional. Algumas resistências pelo comprometimento religioso de alguns alunos.
Muitos demonstraram um grande apego ao objeto construído (arma), dificultando o momento 5.
3- Grande participação.
4- Participação foi bastante dinâmica, provavelmente por já conhecerem esse exercício, quando então “transformaram” uma flauta nos mais variados objetos. Ao final a ferramenta foi apresentada com sua função original e o gestual correspondente para a sua utilização.
5- Grande dificuldade, frente à idéia de criação de “uma arma diferente” ou a transformação da “arma como me lembro que é”. Helio e um dos professores apresentaram seus medos e possíveis idéias de combate a esses medos, quando então houve razoável participação das crianças.
Helio criou uma “arma para combater a amargura”, aproveitando o papel de uma bala de tamarindo que uma aluna lhe deu, ainda durante a contação da estória. A “bala de argila” enrolada passou a ser então munição da “arma inventada” pelo Helio. Pode ter ajudado.
6- Devido ao constrangimento de alguns e a possível falta de atenção e respeito da “platéia”, os alunos que “transformaram”, foram entrevistados e filmados como se fossem cientistas ou inventores famosos, explicando suas invenções.
Os filmes e fotos realizados serão mostrados para todos os alunos ao término deste ciclo de exercícios.


Aula 2/ Programa e resultados:
1- Com a intenção de criarmos um link com a semana anterior, o livro da estória contada “Os três lobinhos e o porco mau” e a estranha ferramenta de escultura usada para a “transformação de um objeto” ficaram disponíveis sobre a mesa para contato com os que foram chegando. Ao começarem as novas propostas esses materiais foram recolhidos.
2- Esclarecimento a todos do motivo dessas duas semanas dedicadas ao tema “arma”. Algo como:
A violência, o medo, o que muitos já assistiram e assistem, todas as dificuldade impostas, o que se deixa de fazer por conta dos tiros e que por isso, muitos querem fazer armas no projeto, etc...
3- Construção poética a partir da livre associação.
4- Desconstrução das letras que compõem a palavra A R M A, para estudo de novas construções.
Criar formas variadas para as quatro letras, que poderão ser produzidas pelo processo de:
a- “Impressão de texturas”. Com cartolina e auxilio de tesouras e estiletes (na mão dos professores).
b- Letras em argila com transferência para o gesso, para se obter o resultado rebatido e em baixo relevo.Pintura das placas realizadas em gesso.
5- Fotos e filmagem para apresentação aos alunos na semana seguinte.

Avaliação:
1- Ok manusearam os materiais expostos.
2- Foi bastante importante e de certa maneira ajudou-os a organizarem o assunto internamente além de possibilitar a verbalização de algumas opiniões.
3- Resultou num trabalho muito forte, bonito e de grande mobilização de quase todos.
4- O processo da bi para a tridimensão foi fundamental e claramente complementar.
A qualidade dos produtos criados foi tão boa além de terem proporcionado muito orgulho para muitos foram valorizados de várias maneiras por todos nós.
Na semana seguinte os trabalhos em gesso foram pintados. Os resultados foram apresentados numa pequena mostra semanas mais tarde.

Obs: Não sentimos necessidade de apresentar o exercício “O buraco do tiro”. O impacto das outras atividades sobre eles já havia sido forte e suficiente para as mudanças positivas que se seguiram.

TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS