Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


terça-feira, 18 de março de 2014

O DENTRO E O FORA NAS FAVELAS DESSA CIDADE

Faço parte da equipe do projeto EU SOU, um projeto social criado pelo arte-educador Helio Rodrigues que usa a arte na construção da subjetividade de crianças e adolescentes moradoras de áreas carentes.
A maior unidade do projeto acontece dentro de um laboratório farmacêutico no bairro do Jacaré e atende principalmente moradores da favela do Jacarezinho, vizinha à fábrica.

Recentemente soubemos que uma espécie de depressão coletiva se abateu sobre a região da favela do Pica-pau situada no complexo do Jacarezinho, depois do trágico incêndio que matou duas crianças de três anos em dezembro do ano passado. Decidimos então ir pessoalmente ao local para falar com as pessoas sobre o projeto e divulgar o período de inscrições para 2014.

O que vi foi um retrato desolador. A completa desassistência que assola a população carente do Rio de Janeiro, faz com que eles tenham que lidar com muitas faltas, mas a maior e pior delas é ter que lidar com a falta de dignidade a que são submetidas pela ausência do poder público. As casas da região margeiam um rio coberto de muito lixo, algumas delas ainda são palafitas. Na casa vizinha aos escombros daquela destruída pelo incêndio, um bebê de cerca de um ano vestindo apenas uma fralda, andava no meio do lixo enquanto uma mulher, talvez sua mãe, talvez sua irmã, em geral não há muita diferença na idade de uma e de outra, o observava apaticamente.

Vamos andando, falando com as pessoas, dentro e fora das casas. Também não são muito claras as fronteiras entre o dentro e fora nas favelas cariocas. As vielas do Pica-Pau são tão estreitas que uma pessoa de braços abertos pode facilmente encostar nas casas vizinhas uma de frente para outra. As pessoas nesse vai e vem estreito, eventualmente dividem o espaço com uma criança de bicicleta que insiste em reivindicar seu direito de ter uma infância normal. Dentro das casas o desafio de abrigar a vida cotidiana de famílias inteiras em um único cômodo faz com que o eu e o outro muitas vezes se confundam.

Em geral temos uma boa receptividade, as pessoas ficam contentes em saber que um sopro de arte pode vir a tocá-las. "É bom pra distrair a mente" diz uma mulher sentada numa pequena cadeira dentro de sua casa, no escuro, uma mão no cigarro caído, a outra no folheto do projeto que eu lhe entregava de onde estava, parada na rua, sem nem precisar me mexer ou esticar muito meu braço.  Seu olhar apagado, tão escuro quanto a casa, tão marcado com a desesperança que pesa sobre ele, me faz ficar na dúvida se ela quer apenas esquecer aquilo tudo, ou se viu, quem sabe, a arte pode iluminar sua
escuridão, ou pelo menos parte dela.

Seguimos. Em algumas esquinas a força de resistência da alegria mítica do carioca aparece. Um grupo conversa animadamente numa parte um pouco mais larga da rua, ali no meio, sentada num degrau, uma mãe fazia carinho em sua filha de uns 10 anos deitada com a cabeça em seu colo. Ela catava os piolhos da menina com cuidado e a filha revirava os olhos de prazer com aquele carinho demorado.

 No grupo, um jovem com necessidade especial me faz pensar nos estímulos que poderia ter para viver melhor e dos quais é tristemente privado. Ali no meio da roda um bebê preocupantemente magro está parado de quatro. Ninguém parece vê-lo. Quando sai engatinhando bem devagarzinho, deixa uma pequena poça em seu lugar. De seu short, sem fralda, o xixi vai pingando por onde ele passa. Assim como a moça do cigarro caído, ele também tem os olhos apagados, poucas coisas são tão impactantes quanto um bebê sem brilho no olhos. Ele me vê conversando com uma das mulheres do grupo e estende a mão em minha direção como se me pedisse algo. Como não tinha mais nada, ofereci um folheto, pensando que talvez ele gostasse de brincar com um papel colorido, mas ele não se mexe nem quando encosto o folheto em sua mão, parece não ter forças para fechá-la. Falo um pouco com ele, mas preciso seguir em frente com o resto da equipe, ele fica ali, chorando de mão estendida em minha direção. Eu? Saio com a garganta fechada e uma enorme opressão no peito.

Nossa equipe provoca algum estranhamento naquele lugar, mas principalmente percebemos muitos sorrisos e agradecimento em nossa direção. Já saindo encontro um casal de uns 60 anos, esses muito articulados e com os olhos bem vivos, como muitos outros que ainda existem e resistem no Pica-Pau.
Os dois ficam muito interessados no que tenho a dizer e quando termino me perguntam: “Você é da prefeitura?”. Respondo que não. “Pois é, que bom saber que existe esse projeto”, dizem eles, “aqui não chega nada da prefeitura. Você pode imaginar, me pergunta ele, quantos músicos temos aqui? Quantos
cantores? Quantos atletas? Quantos artistas?”

Sim, posso imaginar.

Tive o privilégio de conhecer alguns deles nos meus anos de trabalho no Projeto Eu Sou e estou certa que conhecerei muitos mais.

Saio com um pouco daquele lugar e daquelas pessoas dentro de mim. Não há mesmo muita diferença entre o dentro e o fora nas favelas desta cidade.

Andrea Glicberg Spiegel
Arteterapeuta e Arte-educadora






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